Estado Bruto #5 | Aquele matadouro em forma de cidade
A história do ponto de vista dos bois em 'Onde Pastam os Minotauros', a cena cinematográfica de Goiás, o tom sombrio que o cerrado pode ter e mais
Quinta-feira, 3 de abril de 2025.
Opa!
Antes de tudo, preciso contar que a Estado Bruto agora tem identidade visual, com ilustração brabíssima de Nilto Cardoso, artista de Anápolis (GO). A referência foi a foto que tanto gosto da “moça típica da região de Goiás”, feita pelo IBGE nos anos 1950.
Na quinta edição da newsletter, escrevo sobre um romance ambientado em um matadouro no interior de Mato Grosso. Também falo outra vez de ‘Oeste Outra Vez’, de dois artistas de Brasília e de um livro que vai de Richard Wagner a duplas sertanejas melancólicas.
Boa leitura!
Amanda Calazans
Aquele matadouro em forma de cidade
Todos os anos, desde que cheguei a São Paulo, eu me permito ser surpreendida por pelo menos um roteiro excêntrico da Jornada do Patrimônio. São mais de 300 atrações relacionadas à história da cidade, mas sempre fico nos passeios. No ano passado, por exemplo, eu me inscrevi em um percurso de 10 quilômetros entre endereços de matadouros desativados. Caminhando do Vale do Anhangabaú à Vila Mariana, para concluir o roteiro no ex-matadouro onde hoje está a Cinemateca Brasileira, percebi a tendência de empurrar esses estabelecimentos para cada vez mais longe, à medida que a cidade crescia. Portanto, um matadouro em Mato Grosso, na beira do país, parece ser o matadouro definitivo, como se não tivesse mais para onde empurrar.
É nesse matadouro absoluto, no interior de Mato Grosso, que se passa Onde Pastam os Minotauros (Todavia, 2023), romance do cuiabano Joca Reiners Terron. O livro narra os acontecimentos da última segunda-feira útil do ano, quando vai ocorrer a visita de um comitê israelense para autorizar a exportação de carne kosher, obtida de acordo com as regras de alimentação judaicas. O matadouro, no entanto, já exporta carne halal, preparada segundo a tradição islâmica.
Tangido pelo Cão, o garrote invade o curral de matança com ânimo tão comovente que até parece estar sendo libertado. (...) E não está mesmo, se pergunta o Cão, que o iça pelas correntes presas às patas traseiras até a sala de abate através do guincho, onde a carretilha o deposita sobre a bancada com a cabeça apontada para Meca. Os fiscais muçulmanos agarram seu pescoço e Ahmed, ainda murmurando o último versículo para Alá, degola o touro de modo a causar a maior sangria possível. (...) Ainda na área suja, o animal é reconduzido pela carretilha, sendo erguido com violência, e ali se debate, esguichando sangue e resfolegando, enlouquecido, a cabeça quase se desprendendo do pescoço até a esfola, na qual de um só golpe do guincho o couro lhe é arrancado de uma só vez.
A relação entre funcionários palestinos e potenciais compradores israelenses não parece importar aos donos. “Um pavilhão vai se chamar Jerusalém Ocidental e o outro Jerusalém Oriental”, diz um deles antes de gargalhar. Além desse conflito, há a questão de o matadouro produzir carne apenas para exportação, enquanto famintos da região, incluindo ex-funcionários, se acumulam no portão à espera de ossos – o dia narrado no livro, aliás, se passa durante a pandemia de covid-19, quando cenas como essa se tornaram comuns em razão da perda de renda da população.
De todos os contrastes do livro, o melhor deles, ou o mais incerto, é entre bois e homens. Há o Cão, homem nascido na estrebaria cujo carinho pelos animais o levou a se tornar manejador no matadouro, atraindo-os para a morte. “Seu amor pelos bichos amaciava a carne deles, aumentando o valor do quilo.” Se essa é a lógica humana, o leitor vai concordar que vale a pena dar uma chance à lógica bovina, ou à história do ponto de vista dos bois, que neste livro tem espaço também.

Por dentro
FINCA-PÉ. No CCBB do Rio de Janeiro, a exposição Finca-Pé: Estórias da Terra reúne trabalhos de escultura, pintura, desenho e performance de Antonio Obá que reverberam a relação do artista, nascido em Ceilândia (DF), com um cerrado nem sempre solar. A crítica de arte Tatiane de Assis destaca em vídeo o tom sombrio de algumas obras, com expressões que lembram as pinturas de Francis Bacon. A mostra fica até 2 de junho no Rio, depois segue para Belo Horizonte e Brasília.
OU NÃO. Meu Passado Nazista, o novo romance de André de Leones pela Record, chega às livrarias em abril. Mais uma radiografia impiedosa (ou não) do centro-oeste feita pelo autor, o livro perturba desde a capa, com a tela Proibido n.º 2 (1979), de Siron Franco. O lançamento em São Paulo será no dia 11, a partir das 19h, na Livraria da Vila do Shopping Cidade São Paulo.
EXPOSIÇÃO-SHOW. Bárbara Wagner, artista de Brasília conhecida pelas fotografias de corpos populares, apresenta ao lado de Benjamin de Burca um show audivisual no Sesc Avenida Paulista, em São Paulo. Com um trabalho de luz e som, a exposição-show Espelho do Poder provoca uma imersão ativa do espectador durante a exibição dos filmes Swinguerra (2019) e One Hundred Steps (2020).
OUTRA VEZ. Neste mês você deve ouvir falar muito de Oeste Outra Vez, que estreou nos cinemas no fim de março e está sendo bem recebido pela crítica. O filme já foi mais do que recomendado por esta newsletter, então desta vez indico uma entrevista com o diretor, Erico Rassi, no podcast Desencontros, em que ele fala sobre a cena cinematográfica de Goiás. Segundo ele, o estado já passou 40 anos sem lançar lançar um longa. Aliás, o primeiro do diretor, Comeback (2017), filmado em Anápolis e ainda no universo de matadores frágeis, está disponível até maio no Sesc Digital.
Viu algum filme, ouviu alguma banda ou leu algum livro relacionado ao centro-oeste no último mês? Continue as indicações da Estado Bruto nos comentários.
Obrigado pela ajuda na divulgação, Amanda. Abraços.