Estado Bruto #6 | Mãe, Goiânia parece com o Rio de Janeiro?
O mundo em transformação de Paulliny Tort, a construção de Brasília contada por fonogramas, a sétima edição da feira e-cêntrica e mais
Quinta-feira, 1.º de maio de 2025.
Opa!
Em abril o centro-oeste foi pauta nos jornais: Procissão do Fogaréu na cidade de Goiás, 40 anos da morte de Cora Coralina, aniversário de Brasília. Tentando fugir da cobertura jornalística que se repete todos os anos, a sexta edição da Estado Bruto indica uma homenagem aos 65 anos de Brasília a partir de músicas do período, além de um filme brasiliense online e gratuito e de uma newsletter do DF que faz uma agenda cultural nada óbvia.
Escrevo ainda sobre um livro de contos cujas histórias se passam numa cidade goiana fictícia, a feira de publicações independentes de Goiânia e uma exposição de fotografia que une cerrado, pantanal e amazônia.
Boa leitura!
Amanda Calazans
Mãe, Goiânia parece com o Rio de Janeiro?
Além de ser um ótimo livro de contos, Erva Brava (Fósforo, 2021), de Paulliny Tort, é também um ótimo livro de presente. Já considerei comprá-lo para amigos de Goiás e amigos que não conhecem nada de Goiás, para familiares que gostam de ler e familiares que não gostam de ler. Inclusive já comprei sem saber para quem, em uma tentativa de criar um estoque de presentes para festas de aniversário em que não se tem tempo ou inspiração para pensar em outra coisa – felizmente desisti dessa ideia insensível: antes que o livro chegasse ao aniversariante hipotético, dei de presente para a pessoa que mora comigo, em um dia qualquer.
Gosto tanto de Erva Brava que queria tê-lo encontrado antes, logo que saí de Goiás, para sentir que trazia na mudança aqueles personagens conhecidos. Buriti Pequeno, a cidade goiana fictícia que é cenário para os contos, tem todos os tipos: o velho que “sente muito pouca necessidade das palavras”, a mãe com “cabeça fraca” para os estudos, o jovem que anda de moto sem capacete para ser visto e admirado, a mulher tão cristã quanto mística, as assombrações no meio dos vivos. Em comum, todos estão sempre tomando café com muito açúcar.
Para tirar da frente os contos mais memoráveis, Má sorte narra um acidente em um silo de soja. “Justo você, que nunca viu o mar, vai morrer em mar seco”, diz a narradora. Já Rios voadores trata de uma enchente no interior que lembra Temporal, do Carne Doce: “Arrastados pelas ondas no curral/ Teremos litoral”.
Mas gosto especialmente das histórias em que não acontece muita coisa. Em Cabelo das almas, por exemplo, uma família deixa a casa após o marido vender a terra para comprar uma televisão, uma antena parabólica e um sofá.
Chico não pode com dinheiro, Rita sempre comentou, fica doido se abrem uma carteira na frente dele. (...) E faz uma semana que ele não dorme, contando e recontando as cédulas, sonhando em vigília com as coisas que viu na loja de móveis e eletrodomésticos (...). De tanto cheirar o dinheiro, Chico ganhou uma ferida no nariz, um cobreiro bolhoso e purulento. Rita olha para ele, para o nariz carcomido que se deixa molhar pela chuva, vê a ferida úmida e aperta a sacola.
Já Carne de paca apresenta um personagem que poderia estar em Oeste Outra Vez, o faroeste cerratense do qual ainda não parei de falar. Bruto e solitário, Joaquim Baiano tem a rotina alterada quando aceita receber turistas para acampar no terreno dele.
Amanhã cedo sairá para caçar paca, duvida que aqueles lá tenham caçado alguma vez, devem comer só frango mole de granja. Em Buriti Pequeno, há uma granja de frango e Joaquim Baiano sabe que esses bichos parecem umas lesmas cobertas de penas, nem os ossos prestam, tudo se desmancha. São frangos doentes. Quando voltar da caçada, vai assar a paca e dar um pouco para eles. Quer mostrar o ferruginoso do sangue, as fímbrias da carne, o voo da fumaça que sai do braseiro.
Por fim, no conto Matadouro, a dona da fazenda decide levar a filha de uma empregada para Goiânia, para estudar numa “escola de verdade”. “Em troca, ela só precisaria ajudar em casa, (...) coisa pouca, de neta.” A menina pula e dança com a notícia, misturando a fantasia de uma vida melhor na capital do estado com o que conhecia pela TV: “Mãe, Goiânia parece com o Rio de Janeiro?”.
A mão da menina abana pela janela enquanto o carro trota sobre o chão de paralelepípedos. (...) Um lencinho frágil que tremula do mastro dos seus doze anos. A menina dona da mão nunca esteve em outro lugar, seu mundo é Buriti Pequeno, os muros esverdeados onde crescem profusas samambaias, as mangas maduras espatifadas nas calçadas, a beira suja do rio. (...) O mundo da menina é o quartinho sem porta, o colchão puído, a prima mais velha que já conhece os homens, os brinquedos muito raros, a missa de domingo. O mundo da menina é aquela mão que abana e abana quase desesperada de medo e vontade de conhecer outras paragens, mundos feitos de cimento e fumaça.
Além de guardar com carinho todas essas figuras do cerrado para que o leitor possa conhecê-las ou reconhecê-las, o livro de Paulliny Tort é também registro de um Brasil em transformação – econômica, social, ambiental – que está deixando de existir. Por tudo isso, vale o presente.
Por dentro
NOVA CAPITAL. Em razão do aniversário de Brasília, o Discografia Brasileira, acervo fonográfico do IMS, contou a história da construção da capital a partir de uma seleção de músicas do período, com mais de 20 gravações para escutar no próprio site. Penso muito na ida do centro-oestino para o litoral, mas nunca tinha pensado no caminho contrário, quando pessoas deixaram o Rio para se mudar para o centro-oeste. “Dizem, é voz corrente/ Em Goiás será a nova capital/ Leve tudo pra lá, seu presidente/ Mas deixe aqui o nosso carnaval”, cantava Linda Batista em Nova Capital (1956).
CAPITÃO ASTÚCIA. O longa brasiliense Capitão Astúcia, sobre um quadrinista aposentado que decide virar um super-herói aos 80 anos, saiu dos cinemas direto para o YouTube, de graça. O diretor do filme, Filipe Gontijo, explicou no Manual do Usuário esse caminho alternativo de distribuição. Antes, na Folha, Gontijo escreveu um artigo sobre o duelo entre Capitão Astúcia e Capitão América nas salas de cinema.
QUADRADINHO. Para continuar em Brasília, a newsletter Quadradinho é um guia de cultura do Distrito Federal. Mas a maior parte das dicas é atemporal, então a qualquer momento você pode recorrer à edição de museus para visitar ou de atividades relacionadas a cinema para fazer por lá, por exemplo. O projeto é tocado por Ana Rüsche, Deborah Fortuna, Karine Canal e Priscila Calado.
DENTRO. Chegou a Anápolis a exposição de fotografia Dentro, de Adriana Bittar, após passar por Goiânia e Brasília. Com curadoria de Débora Duarte, a mostra reúne fotos em preto e branco do cerrado, pantanal e amazônia e acompanha o lançamento de um livro homônimo. A exposição fica até 12 de junho na Galeria Antônio Sibasolly.
E-CÊNTRICA. Acontece em Goiânia, nos dias 17 e 18 de maio, a feira de publicações independentes e artes gráficas e-cêntrica, com mais de cem expositores nesta sétima edição. É uma boa oportunidade para folhear as edições caprichadas das goianas martelo casa editorial e negalilu editora, esta última também a realizadora da feira.
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